O TEXTO ABAIXO TRATA DE UMA MODULAÇÃO NOS MODOS DE ESCUTA DE UM OPERADOR DE TELEMARKETING LEITOR DE JORNAIS ESTUDANTE DE FILOSOFIA NO PASSAR DAS FESTAS DO ANO DE 2003:
No início do milênio os processos regionais de experimentação coletiva de sonoridades eletrônicas sofreram uma cristalização devido a dois fatores químicos capitais: O crescimento ambíguo das políticas de repressão a usuários de substâncias psicogênicas com a inflação subjetiva e mercantil das mesmas, e a segregação programada pelos mecanismos de comercialização de festas. Lembro do Lagosta catando a Lígia no alto da Torre.
A imposição iconoclástica das festas eletrônicas enquanto creche de drogados pelos noticiários sensacionalistas vinculava a sensação narcótica à experiência de individuação expansiva gerada pelo transe coletivo sonoro. Isto teve um duplo impacto de ampliação do número de festas e do uso entorpecente, ao mesmo tempo que a música se reduziu a táticas hipnóticas hedonistas relegando os movimentos experimentais ao limbo da escuta social. A síncope do jungle teve seu veneno diluído em bossa enquanto o transe quis progredir.
Tal dinâmica se impregnou nas composições deste período criando uma peculiar harmonia social que teve seu clímax, à moda daquelas viradas de djs, na crescente desistência de caras como eu de pegar trens e invadir cercas ou ir a clubes que lhes cobravam metade do salário de atendente de telemarketing para entrar neste A-mór.
Mas disto tudo, muito pouco ou nada era dito. Os lábios desenhavam belos rococós sobre colaborativismo, redes sociais, inclusão digital, artivismo, sons de guerra. Tentativa de englobamento de todas as diferenças. Música de captura e de imposição de silêncio ou exigência de opinião, discussão e tomada de posição, fossem alguns ouvidos órfãos clamando por exílio político. Há um momento precioso em todo movimento musical, a saber, aquele no qual um terrorismo sonoro se converte em milícia estilística ao mesmo tempo que mercado de modos de conduta. Os ouvidos são bocas sem fundo, prontos a consumir algo que os comova seja nervo de pescoço ou filé.
O mangue bit já havia aberto algumas linhas de fuga destes planos através do enredamento da criação sonoro-musical num âmbito micro-político, mas houve uma curva que science não pôde fazer devido à aceleração da velocidade. Cronos, o tempo das máquinas por excelência, acelera o devorar-se nos vãos entre os significados computacionais e a pureza vazia do fonema... temp... tem... em... nestas rachaduras contínuas de qualquer possibilidade nuclear, encontra-se o vigor de um gesto radioativo. Entre os dentes dos tímpanos não apenas a zona autônoma temporária de abandonos programados sincronicamente numa harmonia histórica precisa, mas o chacoalhar de um espaço de temporalidades e velocidades distintas. São Detroit Tókios do México.
O Palhaço Mascarado[enquanto atira cachaça da flor na lapela]:
-Não sofremos, de facto, de incomunicabilidade, de falta de comunicação, mas antes do ruído comunicacional ambiente, do excesso de solicitação em comunicar e informar. O pensamento filosófico nunca teve tanto papel como hoje, porque se instala todo um regime não só político, mas cultural e jornalístico que é uma ofensa a todo pensamento. Toda uma subcultura mediática e mediocrática feita de noções gerais consensuais, em relação com um ar do tempo e com a necessidade permanente dos media de descobrir ou fabricar pseudo-eventos mesmo culturais. Por isso esse novo regime é uma hostilização do pensamento, um impedimento a priori, pior que todas as censuras, dos verdadeiros acontecimentos, um impedimento da crítica, da criação, da invenção de singularidades que arrancam o pensamento das generalidades conformistas comuns, mesmo que veladas sob toneladas de maquilagem revolucionária.
Quando uma festa presentifica um galpão na beira do rio morto que divide a cidade de Som Caos em escutas periféricas, algo ocorre na composição sonora do corpo coletivo. Uma escola de samba cumpre sua devida função de deseducar as leis tonais da música, de transpôr o nojo punk em sacolejo nos pés e precisão intuitiva nas mãos. É por pressão que os tímpanos funcionam, mesmo no roto núcleo um certo tom tanto para o aparecimento como para o velamento da própria evenemencialidade sob a égide da opinião, a arma acusmática que Pitágoras tanto temia na música da praça púbica.
No extremo, a música treme o espaço geométrico dos afetos na corporeidade, do mesmo modo que o som vibra a sala disposta num ponto específico do ruído mundial, criando densidades harmônicas sinestésicas que espalham a escuta pelo corpo todo, das cores à temperatura onde o ego sabe-se coletivo. No banheiro branco nos fundos do clube debaixo da ponte um tag sonoro sorri "Vã Musá!"... A dança de um corpo soterrado por sons, a escuta em uma orelha inundada por batidas em contrafluxos. Nós queremos o silêncio, mas ele insiste que berremos. As verves de uma cidade tumor embarricada fornicam estilos e versos, o heroísmo é a primeira tentação da arte. É preciso que alguém abane os sistemas de som velhos para que não pifem, mas se o que se deseja é manter a dinâmica flutuante do embaralhamento de códigos o melhor é morrer antes do tempo como bem ensinam os escaravelhos, e do próprio cadáver forjar um canto.
No início do milênio os processos regionais de experimentação coletiva de sonoridades eletrônicas sofreram uma cristalização devido a dois fatores químicos capitais: O crescimento ambíguo das políticas de repressão a usuários de substâncias psicogênicas com a inflação subjetiva e mercantil das mesmas, e a segregação programada pelos mecanismos de comercialização de festas. Lembro do Lagosta catando a Lígia no alto da Torre.
A imposição iconoclástica das festas eletrônicas enquanto creche de drogados pelos noticiários sensacionalistas vinculava a sensação narcótica à experiência de individuação expansiva gerada pelo transe coletivo sonoro. Isto teve um duplo impacto de ampliação do número de festas e do uso entorpecente, ao mesmo tempo que a música se reduziu a táticas hipnóticas hedonistas relegando os movimentos experimentais ao limbo da escuta social. A síncope do jungle teve seu veneno diluído em bossa enquanto o transe quis progredir.
Tal dinâmica se impregnou nas composições deste período criando uma peculiar harmonia social que teve seu clímax, à moda daquelas viradas de djs, na crescente desistência de caras como eu de pegar trens e invadir cercas ou ir a clubes que lhes cobravam metade do salário de atendente de telemarketing para entrar neste A-mór.
Mas disto tudo, muito pouco ou nada era dito. Os lábios desenhavam belos rococós sobre colaborativismo, redes sociais, inclusão digital, artivismo, sons de guerra. Tentativa de englobamento de todas as diferenças. Música de captura e de imposição de silêncio ou exigência de opinião, discussão e tomada de posição, fossem alguns ouvidos órfãos clamando por exílio político. Há um momento precioso em todo movimento musical, a saber, aquele no qual um terrorismo sonoro se converte em milícia estilística ao mesmo tempo que mercado de modos de conduta. Os ouvidos são bocas sem fundo, prontos a consumir algo que os comova seja nervo de pescoço ou filé.
O mangue bit já havia aberto algumas linhas de fuga destes planos através do enredamento da criação sonoro-musical num âmbito micro-político, mas houve uma curva que science não pôde fazer devido à aceleração da velocidade. Cronos, o tempo das máquinas por excelência, acelera o devorar-se nos vãos entre os significados computacionais e a pureza vazia do fonema... temp... tem... em... nestas rachaduras contínuas de qualquer possibilidade nuclear, encontra-se o vigor de um gesto radioativo. Entre os dentes dos tímpanos não apenas a zona autônoma temporária de abandonos programados sincronicamente numa harmonia histórica precisa, mas o chacoalhar de um espaço de temporalidades e velocidades distintas. São Detroit Tókios do México.
O Palhaço Mascarado[enquanto atira cachaça da flor na lapela]:
-Não sofremos, de facto, de incomunicabilidade, de falta de comunicação, mas antes do ruído comunicacional ambiente, do excesso de solicitação em comunicar e informar. O pensamento filosófico nunca teve tanto papel como hoje, porque se instala todo um regime não só político, mas cultural e jornalístico que é uma ofensa a todo pensamento. Toda uma subcultura mediática e mediocrática feita de noções gerais consensuais, em relação com um ar do tempo e com a necessidade permanente dos media de descobrir ou fabricar pseudo-eventos mesmo culturais. Por isso esse novo regime é uma hostilização do pensamento, um impedimento a priori, pior que todas as censuras, dos verdadeiros acontecimentos, um impedimento da crítica, da criação, da invenção de singularidades que arrancam o pensamento das generalidades conformistas comuns, mesmo que veladas sob toneladas de maquilagem revolucionária.
Quando uma festa presentifica um galpão na beira do rio morto que divide a cidade de Som Caos em escutas periféricas, algo ocorre na composição sonora do corpo coletivo. Uma escola de samba cumpre sua devida função de deseducar as leis tonais da música, de transpôr o nojo punk em sacolejo nos pés e precisão intuitiva nas mãos. É por pressão que os tímpanos funcionam, mesmo no roto núcleo um certo tom tanto para o aparecimento como para o velamento da própria evenemencialidade sob a égide da opinião, a arma acusmática que Pitágoras tanto temia na música da praça púbica.
No extremo, a música treme o espaço geométrico dos afetos na corporeidade, do mesmo modo que o som vibra a sala disposta num ponto específico do ruído mundial, criando densidades harmônicas sinestésicas que espalham a escuta pelo corpo todo, das cores à temperatura onde o ego sabe-se coletivo. No banheiro branco nos fundos do clube debaixo da ponte um tag sonoro sorri "Vã Musá!"... A dança de um corpo soterrado por sons, a escuta em uma orelha inundada por batidas em contrafluxos. Nós queremos o silêncio, mas ele insiste que berremos. As verves de uma cidade tumor embarricada fornicam estilos e versos, o heroísmo é a primeira tentação da arte. É preciso que alguém abane os sistemas de som velhos para que não pifem, mas se o que se deseja é manter a dinâmica flutuante do embaralhamento de códigos o melhor é morrer antes do tempo como bem ensinam os escaravelhos, e do próprio cadáver forjar um canto.
"Não entendi nada do que você gritou, sussurra no meu ouvido!" disse a moça do nariz bonito
"Uma escrita que soasse como uma festa... Uma filosonia..."
"Uma escrita que soasse como uma festa... Uma filosonia..."
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